Há décadas dizemos que no Brasil todo mundo é juiz de futebol, ou técnico. Nos últimos anos, principalmente depois que as redes sociais caíram no gosto popular dos brasileiros, descobrimos que além de juízes e técnicos de futebol, temos milhares de juízes de direito, psicólogos, filósofos, sociólogos, padres e pastores de plantão.
Agora todo mundo pode em poucas linhas exprimir sua opinião e julgamento sobre qualquer coisa que acontece. Isso é um avanço do ponto de vista da liberdade de expressão e da descentralização da informação e da produção cultural.
No entanto, o que me entristece é o choque por ver um avanço tão importante sendo usado da pior forma possível.
De um lado, a expressão clara do senso comum julgando a tudo e a todos, sem nenhum princípio de reflexão, mas com muitos preceitos que dizemos querer ver exterminados de nossa sociedade, como a intolerância e a falta de civilidade generalizada.
De outro, a tristeza de ver que enfim todos podem ter acesso a este instrumento e o usam tão mal. Passamos décadas discutindo nos almoços de família, nas reuniões de amigos, nas mesas de bar, sobre os problemas do país e da nossa sociedade, e agora que essa discussão pode ter um alcance maior, nos limitamos a julgar o outro com os mesmos princípios dos séculos passados.
São inúmeros os casos só nos últimos meses que podem aqui ser usados de exemplo: yorkshire, Lula e o câncer, Lobo (e outros tantos com animais), estudantes da USP, polêmica BBB. Em cada um desses quase todos os usuários correram gritar seus julgamentos. Julgamentos sim e é aí que mora o problema.
Se há uma situação polêmica em andamento e você quer contribuir para sua solução, o que pode fazer? Dar sua opinião? Sim. Mas dar a opinião é uma coisa, julgar é outra.
Vamos tratar do caso do Yorkshire. Dar opinião é dizer algo como “é preciso ficar de olho nesse caso, cobrar das autoridades uma medida, uma legislação pertinente, sou contra a agressão e maus tratos aos animias e está na cara que a maioria da população brasileira também é”. No entanto, o que mais ouvimos foi “monstra, assassina, tem que morrer, tem que ser torturada, tem que jogar ela na parede também até morrer”. Isso é julgamento e por mais que a indignação nos assole, não tem razão nenhuma em ser proferida e nem é capaz de trazer a efetiva de mudança desejada. Reparem que não estou defendendo a agressora, aliás nem proferi minha opinião sobre o assunto, apenas exemplifiquei duas posturas diferentes para pessoas que têm a mesma indignação e buscam a mesma mudança em nossa sociedade.
O que me intriga é como podemos promover uma cultura de paz, uma vida civilizada, uma sociedade mais justa baseada no respeito, se a reação comum é o julgamento deliberado, descontextualizado, sem bases jurídicas ou sociais, totalmente pessoalizado e imbuído de agressividade? Como poderemos elevar nossas pretensões de uma vida social comum de paz, se baseamos nossos julgamentos em princípios de violência, agressão, sectarismo e discriminação?
Imagino que neste ponto, amigos queridos com que convivo nestas mesmas redes sociais, estejam pensando “ah mica eu falo isso mesmo, porque me dá muita raiva” ou ainda “é isso mesmo, ela merece morrer mesmo”. Eu os entendo. Entendo a indignação e o desabafo. E justamente porque sou capaz de entender, escrevo este texto. Olhem para ele não só como uma crítica, mas também como uma dica, uma sugestão e, não menos como o meu desabafo.
É uma dica, uma sugestão, de que precisam refletir sobre seus princípios e sobre a melhor forma de disseminá-los na sociedade, de incitar o debate e de, assim, conquistar seguidores à causa que defendem, para então, com muitos, conseguir promover a mudança. Eu, esclarecida e contrária a agressão contra animais (ainda usando esta causa como exemplo), não aderiria a nenhum movimento em que seus defensores pedissem a morte, a tortura e a agressão. Uma vida é uma vida. Animal ou humana. Eu não defendo a agressão ou eliminação de nenhuma delas. Nem do mais vil. Simplesmente porque não reconheço em ninguém e nem em nenhuma instituição o poder sobre a vida do outro. Por sorte, vivo num país que me garante este direito na sua carta magna.
O meu desabafo vem de uma tristeza muito maior que sinto, pelo que enxergo nesses pronunciamentos. Ideias retrogradas disseminadas por cientistas há séculos atrás, que exprimem preconceitos extremamente combatidos pelos mesmos que hoje os gritam, sem saberem realmente o que estão falando. Deprime-me ler que, em qualquer situação de violência física, a culpada é a vítima. Deprime-me ler as pessoas rindo e fazendo piada da dor e da doença de outra pessoa só porque não aprova suas posições políticas ou escolhas pessoais. Deprime-me ler piadinhas machistas todos os dias nestas redes. Deprime-me mais ainda reclamar de tudo isso e ser tachada de chata, radical, politicamente correta e até ver minha sexualidade questionada, por ser capaz de olhar o mundo criticamente e não aceitá-lo como a família, a escola, a igreja e a mídia me dizem que ele deve ser.
Para cada caso citado aqui eu tenho uma postura política e filosófica. Eu tenho argumentos, dados, teorias e legislação em que eu posso me apoiar para me expressar sobre cada um deles. Para cada caso eu tenho uma dor e uma decepção com o ser humano e com nossa sociedade. Mas escolhi atacar aqui o que considero o pior problema em todos eles: a mania que temos de julgar o outro, culpa-lo e condená-lo, acreditando que isso é suficiente para resolver o problema. A mania que temos de ignorar o fato de que uma sociedade mais justa e civilizada depende de mudanças, de que as mudanças só ocorrem com atitudes, de que atitudes são acompanhadas e influenciadas pelos discursos e de que tudo isso é fruto de reflexão e conhecimento.