Pesquisar este blog

28.3.13

Carta aberta aos homens


Há algum tempo estou preparando este texto. O assunto é tão difícil e delicado que nunca acho que está suficientemente claro e bem argumentado. Muito provavelmente por dois motivos: falar de abusos sexuais que sofremos mexe com sentimentos muito profundos há tempos colocados em um lugar seguro e, por saber das possíveis reações que surgirão, já que sempre surgem. 
No entanto, expor a minha história em relação a isso é uma forma de dizer pra vocês que estão lendo (90% de amigos pessoais e familiares, que me conhecem, uns 10% que até confiam em mim) que infelizmente o abuso está mais perto do que vocês imaginam. Não é história de filme ou televisão, não é coisa que acontece só com a prima-do-amigo-do-namorado-da-vizinha-do-seu-pai. Está do seu lado, o tempo todo. 
Dito isso, apesar de saber que muitas mulheres precisam de orientação e desabafo sobre o tema, esclareço que meu texto tem endereço certo nos homens das nossas vidas. Por um simples motivo: eles não fazem a menor ideia que isso acontece sempre com a gente, em qualquer lugar, a qualquer hora. Meninos, está na hora de vocês terem ao menos uma noção do que passamos diariamente para, quem sabe, nos apoiarem na luta de acabar com isso. 
A primeira vez que fui seguida por um homem na rua eu tinha menos de 10 anos. Estava indo à padaria para minha mãe. A padaria ficava a alguns quarteirões de casa, coisa de 5 minutinhos andando e por ruas movimentadas. Eu passei por um carro e me olhei no espelho, vi que meu shorts estava torto e parei para arrumar. Foi então que notei um cara numa bicicleta na praça, do outro lado da rua, me olhando. Algo despertou meu alerta, achei estranho uma bicicleta parada ali, com o cara em cima como quem vai andar, me olhando. Então fiz que ia andar pra frente e fiquei olhando, ele também fez menção de sair. Parei novamente e olhei pra ele, ele também parou. Corri. Corri para a casa de conhecido mais próxima, era a tia Vilma, que vendia doces na garagem. Corri toquei a campainha e fiquei esperando tremendo. Ele sumiu, ainda bem. 
Já na fase de sair e ir pra matinê das danceterias (sim, era esse o nome na década de 80), um cara ficou tentando me encoxar no ônibus, eu me esquivava e um amigo percebeu e me colocou sentada, ficando todos os garotos da turma em volta, pro cara não ter acesso. Ele nem disfarçava, começou a pedir pros meninos me apresentar e ficava falando coisas horríveis. Desceu atrás da gente no ponto e os meninos novamente me ajudaram, me acompanhando e vigiando pra ver se ele estava atrás até conseguirmos despistá-lo. 
Com uns 15 anos eu estava no ponto de ônibus esperando quando um cara passou super devagar e me olhando. Em poucos minutos ele passou novamente do outro lado da avenida e parou o carro. Lembro da cara nojenta dele me olhando enquanto esperava para atravessar a rua e eu esperando um ônibus que estava vindo parar no ponto para cobrir a sua visão e ele não ver pra que direção eu correria. Deu certo, em segundos eu subi uma ladeira enorme e cheguei na casa de uma amiga. 
Nesta mesma época, um dia estava indo fazer trabalho na casa de uma amiga e um cara passou devagar com o carro. Ao chegar na esquina ele parou, como quem olha pra cruzar a rua, mas a rua estava deserta, ninguém cruzava e o cara não saía do lugar. Vi ele me olhando pelo retrovisor e parei na primeira casa, tocando a campainha. Ninguém veio atender, mas eu fingi que estava conversando com alguém e o cara foi embora.
Algum tempo depois, não lembro quanto, estávamos no metrô eu e minha irmã. Um velho nojento se aproximou dela que estava sentada e começou a mexer no pinto por cima da calça, na direção do ombro dela. Eu, em pé, ao lado do cara, falei bem alto "cuidado aí". Ele saiu e se sentou num banco próximo. Quando minha irmã se levantou para descer ele foi atrás dela. Eu sentada, porque só desceria na próxima estação, falei alto novamente "Está atrás de você". O cara voltou, sentou e ficou me encarando. Lógico que eu pensei "me ferrei, agora ele vem atrás de mim". Não deu outra, mas eu já saí correndo atropelando todo mundo e só parei quando já estava no outro trem. Ele ficou pra fora. 
Aos 17 eu estava saindo do Metrô Santana, subindo uma escadaria que dá pra Av. Cruzeiro do Sul, num domingo de manhã e senti uma mão no meio das minhas pernas. Eu quase caí da escada, minha irmã me segurou, o cara virou as costas e saiu andando. Só deu tempo de eu jogar a bolsa nas costas dele e gritar "filho-da-puta". Mas o pior foi ver um casal que estava na parte de baixo rir da situação e ver a expressão do cara de quem gostou do que viu. Isso dói até hoje. Eu não queria, eu não permiti, mas dois homens que nunca vi na vida sentiram prazer as minhas custas.
Um ano depois eu estava voltando para um instituto que frequentava com a minha família no Tatuapé, quando do nada um cara me tacou na parede e meteu a mão em mim. Depois de tantas eu já estava mais esperta e com tanta raiva acumulada que dei um soco no peito dele, jogando-o pra trás. Ele então ergueu a blusa e eu vi a arma: "Não grita não que eu estou armado". Corri. Ele não atirou nem veio atrás. Talvez porque um senhor viu e parou pra ficar olhando. O fato é que mais uma vez escapei de algo pior. 
Na faculdade, um cara me seguiu de carro quando voltava, ao meio dia. Ele ia costurando a rua que eu estava subindo de forma a tentar chegar na esquina no momento em que eu fosse atravessar. Conseguiu na terceira tentativa e parou de um jeito que eu teria que passar ou pela frente ou pelas costas do veículo, além de muito próxima a porta de passageiro. Fui calmamente como quem não percebeu e quando eu cheguei na porta do carro virei pra ele, joguei o material no chão,  bati o pé como quem intima pra briga e gritei "que que é? porra!" Acelerou e fugiu. 
Há alguns anos atrás, já no vilarejo, estava voltando pra casa e um cara mexeu com uma garota do outro lado da rua. Ela estava com uma cara apavorada. Eu atravessei e perguntei "algum problema?" E ela disfarçou "então, tá estranho". Ela estava indo numa direção oposta a minha, mas a acompanhei. Ela contou que o cara a estava seguindo desde a avenida e falando coisas horríveis. Fui até a esquina da sua casa, o cara sumiu.
Essas são as histórias mais marcantes. Sem contar as passadas de mão na bunda em balada e no ônibus, os inúmeros caras que levaram uma pastada no pinto por tentar encoxar no ônibus e no metrô...
Reparem que dificilmente vocês encontrarão semelhanças de fatores comumente atribuídos como motivo: diferentes idades, diferentes bairros, cidades e lugares, diferentes roupas e muitas vezes de calça jeans e camiseta, lugares movimentados, sozinha ou em grupo, na fase magra e na gorda e até com outras mulheres envolvidas. 
Tem algo de errado comigo? Não. Todas nós passamos por situações assim. Se ainda acham que é exagero, perguntem para suas mães, irmãs, namoradas, esposas, filhas, amantes, amigas, colegas de trabalho. Eu duvido que elas não tenham ao menos uma história pra contar. Mas não duvido que elas escondam, porque é horrível passar por isso, quanto mais deixar que outros homens saibam. Nunca se sabe o que o cara vai pensar e dizer. A agressão pode só aumentar. No entanto, todas as mulheres que conheço têm alguma história assim pra contar.
Um dia, um ex me disse que eu era encanada demais com isso, que sempre achava que iam me fazer mal. Estávamos na casa dele e eu respondi "ah é, então pergunta pra sua mãe e pra sua irmã se elas já passaram por isso". Ele respondeu "lógico que não, se não eu matava o cara, elas nunca me contaram nada". Eu olhei pra elas e elas só riram. Ele ficou desesperado querendo saber quando, como, o que foi. E elas só disseram que direto acontece e só ele que não sabe. 
Portanto, queridos, saibam. Acontece. Com todas nós, todos os dias, em qualquer lugar, em qualquer situação. Por isso, não nos acusem e não nos agridam mais. Vocês precisam entender que já é hora de vocês mudarem isso entre vocês. Vocês precisam entender que nós somos as vítimas. Vocês precisam se posicionar e largar a comodidade do "perto de mim não acontece". Vocês precisam ficar do nosso lado. 

8 comentários:

  1. Caramba, pesado, Mica.
    Eu nunca passei por algo tenso a ponto de envolver arma e tal. Mas claro que já teve os caras seguindo, encarando e fazendo gestos obscenos, chamados constrangedores, aquela passada de mão que quando vc olha pra trás não sabe quem foi....
    Eu meio que achava que era "normal", mas que idiota eu, não é nada normal, é horrível, abusivo, desrespeitoso! Que vergonha de mim mesma em não ter reagido brutalmente a cada situação dessas.. o máximo que faço é fazer uma cara feia, mandar um dedo do meio, mas na maioria das vezes eu só ignoro e aperto o passo.
    Tenho uma vontade de fazer luta tipo defesa pessoal, pra eu não ter medo de reagir nessas horas, que aí eu vou ter uma carta na manga caso qualquer coisa. Mas é horrível mesmo. Ter esse medo desnecessário. Homens são nojentos ao pensarem que tem direito de fazer esse tipo de perversidade! E ainda veem como uma simples "brincadeirinha". Tem que mandar tomar no cu mesmo!
    Esse post me despertou mó raiva, Mica hahaha
    Vou ver se dou entrada nas aulas de Krav Maga!

    Mas sério, é bastante importante, apesar de embaraçoso, compartilhar essas experiências mesmo. Acho que muita gente como eu que já considerou "normal" precisa de um wake up! Se não isso vai continuar acontecendo... cada vez mais!
    O feminismo tem ganhado mais espaço ultimamente, mas nunca vi eles entrarem nesse assunto. Vou até sugerir pra um grupo feminista da minha universidade!
    Valeu por compartilhar, Mica :)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada Vê.

      Olha eu nunca imaginar, pelo pouco que conversamos, que você acharia algo assim normal. Então, sabe aquela coisa de que se atingir uma pessoa já vele a pena? Estou muito contente.

      Seu comentário também me fez pensar que é necessário abordar mais dois tópicos desse assunto (pesado): o que sentimos depois e o que fazer. Estou afastada do movimento feminista mais atuante, pratico hoje o que chamo de feminismo do cotidiano rs, mas sei um pouquinho que pode ajudar muita gente. Farei em breve.

      Ah, eu pensei em mandar pra grupos feministas, mas achei que seria muito "autopromoção" e deixei pra lá. Agradeço que o faça :)

      Bjos

      Excluir
  2. Então, acho que já conheço essas histórias.... já falamos disso!

    Acho que te contei que uma vez, na faculdade, vi uma colega... uma linda morena alta (que hoje mora nos EUA).. chegando e infantilmente cheguei por trás dela e dei um susto. Quando ela viu que era eu, um dos melhores amigos, me abraçou e começou a chorar.. tinha sido perseguida por muitas quadras por um cara que só tinha parado na esquina perto da faculdade. Até hoje tenho medo de dar susto em pessoas depois disso.

    Minha irmã também foi seguida na rua, por um cara de carro... é barra!

    Pelo menos essas são histórias de terror psicológico que não chegaram ao ápice, felizmente!

    Um dia ainda quero entender o que passa da mente da catarinense que casou com o Maníaco do Parque...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olha só Flá, você lembrou de duas histórias envolvendo mulheres próximas... Mas eu te conheço o suficiente pra saber que mesmo antes de ler você já sabia que isso rola e que é preciso combater. Queria muito que o texto chegasse nos caras que acreditam que não rola muito, que só rola com quem dá mole (e motivo, logo é culpada), naqueles que têm amigos que fazem isso e contam pra galera como sendo algo super macho-foda-legal e simplesmente riem sem dizer nada ao cara, e até aos que fazem isso.

      O terror era maior quando eu não entendia que isso não é culpa minha. Achava que tinha feito algo de errado, que era como uma punição pela mulher que sou. Isso durou muito tempo, até as revoltinhas de adolescente quando se quer mudar o mundo porque descobre-se que é ele que está errado ;)

      O caso das mulheres que se apaixonam por psicopatas (predadores sexuais ou não) é intrigante até para especialistas... E também quero muito entender!

      Bjo

      Excluir
    2. Seria algo parecido com a 'síndrome de estocolmo'?

      Excluir
    3. Olha! Faz sentido né!? Não é o cara que fez mal a elas, mas pode ser a representação de quem tenha feito... É, normalzinhas é que elas não são né!?

      Excluir
  3. Me corrigindo, não é só terror psicológico pq também teve abuso físico em algumas situações... mas poderia ser BEM pior... como o caso do cara armado!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ah! Uma curiosidade que eu devia guardar para o próximo post hahahaha a maioria dos agressores sexuais fogem quando percebem que a mulher vai dar trabalho. Se ela reage, grita, fica difícil de controlar, eles abandonam o ato. Isso porque sabem que ser preso por estupro é uma pena mais leve e se ficar comprovado algo realmente (no Brasil quase ninguém é preso por estupro), mas se forem pegos por homicídio a coisa é mais complicada. Isso, foi descoberto em entrevistas feitas com condenados por estupro, eles mesmo disseram que funciona assim...

      Excluir