Há algum tempo estou preparando este texto. O assunto é tão difícil e delicado que nunca acho que está suficientemente claro e bem argumentado. Muito provavelmente por dois motivos: falar de abusos sexuais que sofremos mexe com sentimentos muito profundos há tempos colocados em um lugar seguro e, por saber das possíveis reações que surgirão, já que sempre surgem.
No entanto, expor a minha história em relação a isso é uma forma de dizer pra vocês que estão lendo (90% de amigos pessoais e familiares, que me conhecem, uns 10% que até confiam em mim) que infelizmente o abuso está mais perto do que vocês imaginam. Não é história de filme ou televisão, não é coisa que acontece só com a prima-do-amigo-do-namorado-da-vizinha-do-seu-pai. Está do seu lado, o tempo todo.
Dito isso, apesar de saber que muitas mulheres precisam de orientação e desabafo sobre o tema, esclareço que meu texto tem endereço certo nos homens das nossas vidas. Por um simples motivo: eles não fazem a menor ideia que isso acontece sempre com a gente, em qualquer lugar, a qualquer hora. Meninos, está na hora de vocês terem ao menos uma noção do que passamos diariamente para, quem sabe, nos apoiarem na luta de acabar com isso.
A primeira vez que fui seguida por um homem na rua eu tinha menos de 10 anos. Estava indo à padaria para minha mãe. A padaria ficava a alguns quarteirões de casa, coisa de 5 minutinhos andando e por ruas movimentadas. Eu passei por um carro e me olhei no espelho, vi que meu shorts estava torto e parei para arrumar. Foi então que notei um cara numa bicicleta na praça, do outro lado da rua, me olhando. Algo despertou meu alerta, achei estranho uma bicicleta parada ali, com o cara em cima como quem vai andar, me olhando. Então fiz que ia andar pra frente e fiquei olhando, ele também fez menção de sair. Parei novamente e olhei pra ele, ele também parou. Corri. Corri para a casa de conhecido mais próxima, era a tia Vilma, que vendia doces na garagem. Corri toquei a campainha e fiquei esperando tremendo. Ele sumiu, ainda bem.
Já na fase de sair e ir pra matinê das danceterias (sim, era esse o nome na década de 80), um cara ficou tentando me encoxar no ônibus, eu me esquivava e um amigo percebeu e me colocou sentada, ficando todos os garotos da turma em volta, pro cara não ter acesso. Ele nem disfarçava, começou a pedir pros meninos me apresentar e ficava falando coisas horríveis. Desceu atrás da gente no ponto e os meninos novamente me ajudaram, me acompanhando e vigiando pra ver se ele estava atrás até conseguirmos despistá-lo.
Com uns 15 anos eu estava no ponto de ônibus esperando quando um cara passou super devagar e me olhando. Em poucos minutos ele passou novamente do outro lado da avenida e parou o carro. Lembro da cara nojenta dele me olhando enquanto esperava para atravessar a rua e eu esperando um ônibus que estava vindo parar no ponto para cobrir a sua visão e ele não ver pra que direção eu correria. Deu certo, em segundos eu subi uma ladeira enorme e cheguei na casa de uma amiga.
Nesta mesma época, um dia estava indo fazer trabalho na casa de uma amiga e um cara passou devagar com o carro. Ao chegar na esquina ele parou, como quem olha pra cruzar a rua, mas a rua estava deserta, ninguém cruzava e o cara não saía do lugar. Vi ele me olhando pelo retrovisor e parei na primeira casa, tocando a campainha. Ninguém veio atender, mas eu fingi que estava conversando com alguém e o cara foi embora.
Algum tempo depois, não lembro quanto, estávamos no metrô eu e minha irmã. Um velho nojento se aproximou dela que estava sentada e começou a mexer no pinto por cima da calça, na direção do ombro dela. Eu, em pé, ao lado do cara, falei bem alto "cuidado aí". Ele saiu e se sentou num banco próximo. Quando minha irmã se levantou para descer ele foi atrás dela. Eu sentada, porque só desceria na próxima estação, falei alto novamente "Está atrás de você". O cara voltou, sentou e ficou me encarando. Lógico que eu pensei "me ferrei, agora ele vem atrás de mim". Não deu outra, mas eu já saí correndo atropelando todo mundo e só parei quando já estava no outro trem. Ele ficou pra fora.
Aos 17 eu estava saindo do Metrô Santana, subindo uma escadaria que dá pra Av. Cruzeiro do Sul, num domingo de manhã e senti uma mão no meio das minhas pernas. Eu quase caí da escada, minha irmã me segurou, o cara virou as costas e saiu andando. Só deu tempo de eu jogar a bolsa nas costas dele e gritar "filho-da-puta". Mas o pior foi ver um casal que estava na parte de baixo rir da situação e ver a expressão do cara de quem gostou do que viu. Isso dói até hoje. Eu não queria, eu não permiti, mas dois homens que nunca vi na vida sentiram prazer as minhas custas.
Um ano depois eu estava voltando para um instituto que frequentava com a minha família no Tatuapé, quando do nada um cara me tacou na parede e meteu a mão em mim. Depois de tantas eu já estava mais esperta e com tanta raiva acumulada que dei um soco no peito dele, jogando-o pra trás. Ele então ergueu a blusa e eu vi a arma: "Não grita não que eu estou armado". Corri. Ele não atirou nem veio atrás. Talvez porque um senhor viu e parou pra ficar olhando. O fato é que mais uma vez escapei de algo pior.
Na faculdade, um cara me seguiu de carro quando voltava, ao meio dia. Ele ia costurando a rua que eu estava subindo de forma a tentar chegar na esquina no momento em que eu fosse atravessar. Conseguiu na terceira tentativa e parou de um jeito que eu teria que passar ou pela frente ou pelas costas do veículo, além de muito próxima a porta de passageiro. Fui calmamente como quem não percebeu e quando eu cheguei na porta do carro virei pra ele, joguei o material no chão, bati o pé como quem intima pra briga e gritei "que que é? porra!" Acelerou e fugiu.
Há alguns anos atrás, já no vilarejo, estava voltando pra casa e um cara mexeu com uma garota do outro lado da rua. Ela estava com uma cara apavorada. Eu atravessei e perguntei "algum problema?" E ela disfarçou "então, tá estranho". Ela estava indo numa direção oposta a minha, mas a acompanhei. Ela contou que o cara a estava seguindo desde a avenida e falando coisas horríveis. Fui até a esquina da sua casa, o cara sumiu.
Essas são as histórias mais marcantes. Sem contar as passadas de mão na bunda em balada e no ônibus, os inúmeros caras que levaram uma pastada no pinto por tentar encoxar no ônibus e no metrô...
Reparem que dificilmente vocês encontrarão semelhanças de fatores comumente atribuídos como motivo: diferentes idades, diferentes bairros, cidades e lugares, diferentes roupas e muitas vezes de calça jeans e camiseta, lugares movimentados, sozinha ou em grupo, na fase magra e na gorda e até com outras mulheres envolvidas.
Tem algo de errado comigo? Não. Todas nós passamos por situações assim. Se ainda acham que é exagero, perguntem para suas mães, irmãs, namoradas, esposas, filhas, amantes, amigas, colegas de trabalho. Eu duvido que elas não tenham ao menos uma história pra contar. Mas não duvido que elas escondam, porque é horrível passar por isso, quanto mais deixar que outros homens saibam. Nunca se sabe o que o cara vai pensar e dizer. A agressão pode só aumentar. No entanto, todas as mulheres que conheço têm alguma história assim pra contar.
Um dia, um ex me disse que eu era encanada demais com isso, que sempre achava que iam me fazer mal. Estávamos na casa dele e eu respondi "ah é, então pergunta pra sua mãe e pra sua irmã se elas já passaram por isso". Ele respondeu "lógico que não, se não eu matava o cara, elas nunca me contaram nada". Eu olhei pra elas e elas só riram. Ele ficou desesperado querendo saber quando, como, o que foi. E elas só disseram que direto acontece e só ele que não sabe.
Portanto, queridos, saibam. Acontece. Com todas nós, todos os dias, em qualquer lugar, em qualquer situação. Por isso, não nos acusem e não nos agridam mais. Vocês precisam entender que já é hora de vocês mudarem isso entre vocês. Vocês precisam entender que nós somos as vítimas. Vocês precisam se posicionar e largar a comodidade do "perto de mim não acontece". Vocês precisam ficar do nosso lado.