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19.4.14

Vozes


Ouvia vozes. Acontecia desde criança, mas nessa época ainda não sabia que isso era anormal. As vozes faziam parte de suas brincadeiras, eram amigos, personagens, não as estranhava. Achava mesmo que não tinham vontade própria, que ela determinava o que diriam. 
Na adolescência começou a perceber que aquilo não era algo que se passava na cabeça de todas as pessoas. As vozes eram seu porto seguro. Com elas discutia sua vida, as dúvidas, as incertezas, as paixões e as decepções de adolescente. Mas percebeu que as outras garotas do colégio pareciam não ter tantos conselhos internos assim. Então, decidiu que nunca contaria pra ninguém sobre todas aquelas vozes que conversavam com ela diariamente, o tempo todo. 
Foi um acontecimento específico e simples que a fez ter certeza que aquilo era loucura, que tinha algo errado com ela. Estava no trabalho. Era recepcionista de um hotel executivo. Passava todas as manhãs recebendo e atendendo os clientes. Entre uma fala e outra, ouvia ainda os amigos internos fazerem comentários sobre os clientes, reflexões sobre a vida, observações sobre o hotel. Então um cliente lhe pergunta "o que?" e ela se assusta. Não disse nada. Disse, só não entendi, falou baixinho. Não disse, foi impressão, seu cartão. 
Aquilo a incomodou. Realmente ela tinha dito algo, respondeu uma das vozes, mas tinha certeza que fora em pensamento. Agora já não tinha mais certeza se fora só em pensamento. Percebeu que se sempre respondia as vozes em voz alta, isto era realmente loucura. Nunca vira ninguém falando sozinho pela rua, só os bêbados e os loucos. Então, era louca. Ouvir vozes não era normal, muito menos respondê-las. 
Passou por um tempo em que se empenhou em ignorar as vozes, como se isso pudesse calá-las. Foi a pior fase de sua vida. Era um tormento constante. Elas não paravam, cobravam respostas, pediam atenção, se diziam tristes e abandonadas. Sentia-se desesperada e, mais ainda, sentia saudades. Era como se tivesse mudado pra longe de todos os seus amigos. Quando essa saudade machucou mais do que ela podia aguentar, voltou a falar com suas amigas. Foi recebida com festa e, para que ninguém mais soubesse de sua loucura, combinaram só conversar quando não houvesse ninguém por perto. 
O combinado funcionou. Sentia-se segura novamente. Sabia que era louca, que possuía um exército de vozes dentro dela. Vozes com timbre e personalidades diversas. Mas ela tinha uma vida normal e essa galera interna não a atrapalhava em nada. Aliás, só ajudavam. 
Conheceu Fernando. Casaram-se. Nasceu Lucas. Tudo isso com as vozes participando. Choraram em seu casamento. Ajudaram no parto. Ela nunca se incomodou. Sentia-se completa. 
Quando Lucas começou a falar, teve medo que ele fosse como ela. Investigou ao máximo os amigos imaginários do filho para garantir que não o seguiriam para o resto da vida. Suas vozes se magoaram com isso. Você preferia que a gente não existisse, queria ser normal. Então será. Foram embora. 
Passaram-se meses, anos. Nunca voltaram. Ela perdeu o chão, o rumo. Entrou em depressão. Toma remédios até hoje.